Como a maconha é utilizada por diferentes povos ao redor da terra? Parte I
Para a antropologia dizemos que o conceito de cultura é algo muito mais amplo do que somente as produções materiais a respeito de um determinado tema. Cultura, a grosso modo, é tudo relacionado com os modos de pensar e agir sobre algo que faz parte da vida de um grupo humano, e com tudo que tiver relação direta ou indireta com isso. Mais que isso, a cultura, como outros conceitos utilizados nas Ciências Sociais (sociologia, antropologia, etnologia, etc), são considerados instrumentos teóricos que servem muito bem para a tarefa de ajudar na compreensão, análise, etc das sociedades e grupos humanos. Porém, as ciências sociais consideram esses instrumentos muito limitados frente a complexidade da realidade. Ou seja, o que quero dizer é que por mais que a ciência fala a respeita de uma ou outra sociedade, jamais será capaz de abarcar todos os aspectos da sua complexidade.
Muitas pessoas que usam maconha atualmente costuma afirmar a existência de uma “cultura da maconha”, de modo generalizado, que englobaria todas as pessoas que usam a erva. É claro que se estamos falando de uma pessoa que mora num centro urbano, que consome produções culturais relacionadas com o tema através da internet, TV e outros meios vai acabar tendo mais contato com um tipo específico de “cultura da maconha”, que alguns autores dizem ser “massificada”. Outros dizem que, na verdade, esses elementos culturais estão disponíveis em meios de fácil acesso para muitas pessoas ao mesmo tempo, dando às pessoas a opção de descartar ou acatar aquilo que acharem “melhor” e com isso a falsa impressão de massificação ao observador desatento. A despeito de uma ou outra maneira de interpretar as “culturas da maconha” da atualidade e a maneira como as pessoas a consomem e são por elas consumidas esse texto pretende apresentar algumas ”culturas tradicionais” ao redor do mundo que fazem uso de maconha. Vamos dar alguns exemplos do quão variada pode ser a relação dos seres humanos com a cannabis na atualidade, revelando que a tal da “cultura da maconha”, ou seja, os modos de consumo de maconha em uma determinada sociedade ou grupo social, na verdade tem mais haver com a cultura geral da sociedade do que com a erva em si. Ou seja, a maconha entra como mais um dos diversos elementos constituintes de uma ou outra cultura. Assim, invés de falarmos de “cultura da maconha”, seria mais adequado falar da maneira como uma determinada cultura se relacionada com a erva.
“Complexo da Ganja” X “Complexo da Marijuana”
Em 1975 a antropóloga Vera Rubin publicou uma coletânea de artigos escritos por diferentes antropólogos, etnólogos, etnobotânicos e outros especialistas, analisando os usos tradicionais da cannabis em diferentes povos espalhados pelo planeta. Através de uma análise comparativa a pesquisadora traçou os conceitos de “complexo da ganja” e “complexo da marijuana”, para facilitar a compreensão e análise da relação das sociedades e grupos humanos com a cannabis. No “complexo da marijuana” estariam sociedades no qual a cannabis é vista apenas como matéria-prima para exploração industrial e comercial. Segundo o conceito, nos grupos da “marijuana”, a cannabis tem seus potenciais explorados sem que haja uma relação mais profunda com o vegetal. O que vemos é apena um uso utilitarista da erva. O modelo sãos as sociedades capitalistas modernas, no qual a erva é tratada de maneira objetificada, tornando-se instrumento para proporcionar algo que seja útil aos seres humanos. Assim, nessas sociedades a cannabis não é vista como um ser vivo especial, mas apenas como objeto a ser transformado em algo que tenha valor de mercado.
Nas sociedades e grupos humanos que podem ser reconhecidos como pertencentes ao “complexo da ganja”, a cannabis é considerada sagrada, dotada não apenas de potenciais que podem ajudar a melhorar a vida dos seres humanos, mas também como ser vivo com vontade e poderes próprios. O modelo referencial para este conceito é a sociedade indiana, na qual a ganja, como é chamada cannabis, já se relaciona com os humanos há milhares de anos. Até hoje, diferentes grupos religiosos na Índia mantém devoção à cannabis como sendo um vegetal sagrado, dada pelos Deuses para manter a conexão dos humanos com o Superior. Os Vedas, livros sagrados do Hinduísmo, escritos há mais de 4.000 anos, já citavam em diferentes passagens tanto a ganja (flores fêmeas da erva, parte onde se concentra mais resina) quanto o charas (resina concentrada extraída de flores fêmeas). No “complexo da ganja”, portanto, a cannabis é vista não como um objeto com mil e uma utilidades, que é a maneira como ela é vista nas sociedades atuais do “complexo da marijuana”. Nessas sociedades do “complexo da ganja” a erva é vista como um ser superior, sagrado, dotado de espiritualidade, vontade, poderes próprios e tudo que ela proporciona aos humanos são presentes que apenas comprovam sua benevolência para conosco e seu poder sobre o mundo material. É claro que essas são palavras genéricas, que não podem ser aplicadas diretamente para descrever a forma como nenhuma sociedade ou grupo humano vê a cannabis. Mas servem, de modo geral, para descrever um pouco o que o conceito de “complexo da ganja” quer dizer.
China
A China, apesar de ser a nação onde foi encontrado o uso mais antigo da cannabis sempre viu na planta apenas um grande potencial para produção de diferentes produtos. Desde o princípio a planta foi utilizada por suas propriedades para fabricação de produtos à base de suas fibras e medicamentos com sua resina. Mesmo nos dias de hoje, onde uso de cannabis é altamente criminalizado e seu comércio para fins recreativos pode gerar até pena de morte, a erva é cultivada oficialmente para exploração comercial. A China atualmente é o maior produtor mundial de cânhamo, variedades de cannabis ricas em fibras e com taxas menores de 1% de THC. Por outro lado essas variedades são ricas em CBD e muitos produtores de cânhamo para indústria têxtil têm também fornecido material para produção de extratos de cannabis ricos em CBD, que são vendidos como medicamentos em diversos países, incluindo o Brasil.
Japão
No Japão o uso e comércio recreativo da cannabis também é criminalizado com severas penas. Não há regulamentação do uso medicinal. Mas, por outro lado, o cultivo do cânhamo para extração das fibras nunca foi proibido e até os dias de hoje prossegue.
Sufis
O Sufismo é uma vertente do Islamismo surgida por volta do séc. VII, com os primeiros seguidores do profeta Maomé. Os sufistas acreditam na importância da experiência pessoal de contato com Deus e que devem ser usadas variadas técnicas para alcançar a conexão com o divino, incluindo dança, música, meditação e o uso de preparado com plantas. Os sufis foram os descobridores do café, o qual utilizavam em preparados muitos concentrados consumidos ao longo dos rituais. Também foram os pioneiros no mundo árabe na produção e consumo do haxixe, que utilizam não apenas nos rituais religiosos, mas nas reuniões sociais do dia a dia e mesmo em momentos de descontração, como uma espécie de conexão permanente com o divino. Os sufistas não são muito bem vistos por alguns grupos islâmicos, que inclusive condenam suas práticas, especialmente o consumo de haxixe.
Marrocos
O Norte da África está entre os lugares com ocupação humana mais antigo. No Marrocos tradicionalmente se faz uso da cannabis para variados fins há milhares de anos e atualmente o país é responsável por certa de 25% da produção mundial de haxixe, sendo considerado o maior produtor, fornecendo cerca de 70% do haxixe consumido na Europa. Os povos berberes que moram nas montanhas do Vale do Rif, umas das maiores produtores de haxixe do país, estão entre um dos mais guerreiros da história. Foram eles que ajudaram o Marrocos a resistir às invasões romanas (séc. I), árabes (séc. VII) e espanholas (1910). Isso fez com que os berberes ganhassem respeito da Coroa e como gratidão os govenantes jamais coibiram a tradição local de cultivo de cannabis e manufatura de haxixe no Vale do Rif. Por isso o produtores tradicionais do país nunca deixaram de cultivar cannabis para extração da resina.
Rastafaris
Os Rastafari são um grupo bastante heterogêneo e surgiram no início do séc. XX, a partir de cultos, realizados por camponeses nas zonas rurais da Jamaica, que utilizavam uma versão da bíblia da Igreja Ortodoxa da Etiópia. Os rastafari seguem um conjunto de regras e tradições que, entre outras coisas, inclui o uso sagrado da cannabis, chamada por eles de ganja ou kaya. O culto também tem influência hindu, devido aos imigrantes indianos que viveram na Jamaica no começo do séc. XX. Desse contato com a cultura hindu também vieram o estilo de cabelo em dreadlocks, muito usado pelos sadhus na Índia, devotos de Shiva que fazem uso sagrado da cannabis. Na década de 1960, 70 e 80 a cultura rastafari passou a ser mundialmente conhecida através de sua expressão musical, o reggae, uma das maneiras de louvar a Jah, maneira abreviada de chamar Jeová.
* Sergio Vidal é pesquisador, escritor, ativista, redutor de danos e pai dedicado de uma linda menina de 5 anos. Biografia completa no link: http://sergio-vidal.blogspot.com.br/p/sergio-vidal.html
* Picture by @420smokespots (Instagram)
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