top of page

História da Maconha no Brasil e no Mundo Parte III

No primeiro artigo desta série contamos como a cannabis chegou ao Brasil e como o cânhamo foi cultivado em todo território nacional por iniciativas apoiadas pelo Estado até o final do séc.XIX. No segundo artigo narramos acontecimentos importante do séx. XIX e contamos como o paradigma eugenista racista que dominava a mente de muitos políticos e cientistas no final do séc. XIX e primeira metade do XX deram origem aos argumentos e iniciativas que culminaram com a proibição total da maconha no Brasil, em 1932. No texto de hoje vamos falar um pouco de como tem sido a relação dos brasileiros com a erva depois da sua proibição em 1932 até os dias de hoje.

Ditadura Proibicionista do Estado Novo

O decreto 20.930 entrou em vigor em março de 1932 proibindo a maconha, chamada no documento de “cannabis indica” em todo território nacional, não foi uma decisão muito democrática, muito ao contrário, foi uma atitude bem autoritária e por vários motivos. O principal deles é que o documento não foi obra de uma consulta a cientistas, médicos, farmacêuticos ou quaisquer especialistas sobre o tema, muito menos à Sociedade Civil, ou quaisquer autoridades legislativas eleitas pelo povo, pois foi redigido e entrou em vigor durante um período ditatorial da história brasileira. O período de 1930 a 1945, que ficou conhecido como “Era Vargas”, ou “Estado Novo”, foi responsável por diversas leis que tinham como objetivo facilitar o controle da população, entre as quais a que criminalizava a maconha, obra do ministro da Educação e Saúde Francisco Campos, conhecido por sua doutrina jurídica antiliberal e autoritária.

Em 1933, os anais da Polícia do Rio de Janeiro registravam as primeiras prisões em consequência do comércio clandestino de maconha. Segundo os documentos, as principais zonas de comércio eram as regiões conhecidas como “[...]zona do baixo meretrício, o Môrro da Favela, Cais do Pôrto, Gamboa [...]” e “Timóteo Maidagem, Gato Bravo, Pilotinho e Lingüiça” eram os apelidos de alguns dos primeiros detidos pelo novo crime denominado tráfico de maconha. Em 1934, foi promulgada uma nova Constituição, em meio a muitas agitações políticas e sociais. No ano seguinte, 1935, o Poder Executivo decretou a Lei de Segurança Nacional (LSN), através da qual o Estado e seus órgãos, entre eles a polícia, ganhou novos poderes de controle, com restrições às liberdades individuais e direitos. Em 1936 é criada a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, primeira iniciativa de federalização da repressão ao uso e comércio da maconha e outras drogas.

Nessa época, além de ser hábito de consumo em reuniões sociais, a maconha ainda era amplamente consumida como medicamento e também de forma ritualística e religiosa por diversos grupos em todo país, principalmente no norte e nordeste. Em casas de culto afro-brasileiras, a maconha era consumida de diferentes formas, em rituais variados. Arthur Ramos e Jarbas Pernambuco e outros estudiosos nos contam da existência do uso da planta em catimbós e candomblés de Pernambuco e em todo nordeste. De fato, há registros de que o uso da maconha em candomblés, catimbós e outros rituais afro-brasileiros tenha resistido em Pernambuco, Bahia, Alagoas e outros estados, pelo menos até a década de 1940.

No dia 25 de novembro de 1938 Getúlio Vargas impôs mais um decreto, nº 891/38, punindo com penas ainda mais severas o comércio e a posse de maconha sem autorização. Dessa vez a maconha não era listada apenas como cannabis indica, mas citada também como cânhamo, cannabis sativa, meconha, diamba, liamba e “outras denominações vulgares”. As penas para o usuário podiam chegar a até quatro anos de prisão, previstos na conduta de “ter consigo [...] sem prescrição do médico ou cirurgião-dentista [...] ou sem observância das prescrições legais ou regulamentares”. Ainda segundo o Decreto, poderiam se aplicadas penas de 1a 5 anos de prisão e multa para as condutas de:

“Facilitar, instigar por atos ou por palavras, a aquisição, uso, emprego ou aplicação de qualquer substância entorpecente, ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir substâncias compreendidas no art. 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no art. 2º, ou de qualquer modo proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas substâncias”.

Interessante e importante notar os aspectos autoritários das leis proibicionistas brasileiras que, desde o princípio se preocuparam em punir crimes relacionados com os aspectos culturais. Podemos ver isso na criminalização do ato de “instigar por atos ou palavras”, que praticamente pode enquadrar a grande parte dos diálogos entre os usuários e seus amigos em contexto de uso, já que dá margem para criminalizar qualquer tipo de diálogo sobre o tema. Essa foi a origem do famoso “crime de apologia”. O decreto de 1938 tinha como um dos principais pontos a regulamentação e definição das atribuições da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), criada em 1936 e o estabelecimento de pena de prisão para os crimes relacionados com plantio, armazenamento ou porte para consumo pessoal, iniciando o entendimento jurídico de que o usuário não era mais um doente e sim um criminoso.

Em 1943, uma expedição foi destacada para visitar comunidades onde se fazia uso tradicional de maconha nos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco, principalmente nos povoados às margens do Rio São Francisco. Ao término da expedição um relatório foi encaminhado à CNFE alertando que mesmo proibida há cerca de 11 anos, quase a totalidade dos cultivadores e consumidores visitados desconhecia totalmente a lei e seguiam consumindo a erva sem sequer saber que era proibida. A erva era vendida livremente por mateiros e herboristas em feiras e mercados sob diversas denominações, entre as quais diamba ou fumo bravo. O relatório concluía recomendando à CNFE que promovesse uma intensa campanha mostrando os “malefícios do cultivo e do uso da maconha” e buscasse maior articulação entre os diversos Estados da Nação com o objetivo de erradicá-los do país.

Para isso, a CNFE promoveu a realização do Convênio Interestadual da Maconha, em 1946, reunindo representantes das Comissões de Fiscalização de Entorpecentes de diferentes estados do norte e nordeste na cidade de Salvador. Após dezenas de palestras e outras exposições de agrônomos, médicos, autoridades policiais e outros especialistas, os trabalhos foram encerrados com a publicação do Relatório Final, redigido pelo Dr. Pernambuco e com o lançamento da Campanha Nacional de Combate a Maconha. As conclusões do Convênio estabeleceram as seguintes normas, que deveriam passar a ser seguidas rigidamente em todo o Território Nacional:

  1. Planejamento de ações e padronização de estudos visando a promoção de uma intensa campanha educativa contra o uso e plantio;

  2. Organização de cursos práticos para as autoridades policiais e sanitárias para ampliar os conhecimentos sobre a botânica e os “males” da planta, buscando principalmente facilitar o trabalho de identificação dos “criminosos e viciados”;

  3. Estímulo a classe médica para promover estudos sobre os “males da maconha” e sobre as características dos usuários;

  4. Promoção da inclusão do tema nos congressos e reuniões de psiquiatria;

  5. Incentivo a cooperação e articulação entre as Comissões de Fiscalização dos estados onde o uso e plantio seriam mais disseminados – Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas – promovendo o estabelecimento de convênios e a obrigatoriedade do intercâmbio de todo tipo de informações (relatórios, dados estatísticos, fichas criminais, dentre outros);

  6. Criação nos Departamento de Segurança Pública, em nível federal e estadual, de órgãos especializados na repressão e combate ao uso;

  7. Registro de indivíduos e grupos ligados a cultos afro-brasileiros onde se fazia uso da planta, a partir de fontes médicas e sociológicas, e encaminhamento dos dados às autoridades responsáveis;

  8. Estabelecimento de gratificações aos membros das Comissões de Fiscalização de Entorpecentes do país, “em vista dos extraordinários serviços prestados por eles à sociedade”.

Ditadura Proibicionista dos Militares

Alguns anos antes da Convenção Única de Narcóticos ser realizada em 1961, a pedido da CNFE, o professor Décio Parreiras foi designado como relator de um documento que representasse a revisão científica a respeito do tema na época e que reunisse a maior quantidade de informações possível a respeito do tema. O documento analisou trabalhos científicos e observações clínicas produzidos de 1915 a 1959, e também algumas obras anteriores a este período. O relatório é um documento histórico muito importante, pois não apenas analisa os dados científicos existentes sobre a planta, mas tece comentários a respeito das controvérsias científicas em torno de como deveria ser sua classificação adequada e se a cannabis seria causadora de “toxicomania” ou “hábito”. Até mesmo as propriedades medicinais da planta são consideradas no documento. Apesar disso, durante a Convenção Única de Narcóticos, realizada em Nova York, o Brasil reafirmou os mesmos posicionamentos proibicionistas com relação à cannabis e seus derivados emitidos na reunião de 1924.

A partir das recomendações das delegações do Brasil, E.U.A. Egito, Grécia e outros países, a Cannabis foi proibida mundialmente e entrou em duas classificações, sendo considerada não apenas substância perigosa e capaz de causar dependência (Lista I), mas também sem qualquer utilidade medicinal (Lista IV), o que dificulta até hoje as pesquisas científicas e o acesso a medicamentos com a erva. A maconha passou então a ser considerada como inútil e perigosa por um tratado assinado por dezenas de países, que se comprometeram a criar e executar leis visando sua extinção e o banimento das culturas em torno do seu uso. Apesar de toda repressão a maconha jamais parou de ser consumida e, a partir da década de 1960 passou a ser cada vez mais usada em diferentes grupos da sociedade brasileira e de outros países ocidentais. Os “inimigos” da saúde pública, da moral e dos bons costumes deixaram de ser apenas os jovens pretos, moradores de favelas e das camadas “indesejáveis”, para serem os jovens adeptos da contracultura hippie, das experimentações psicodélicas e de outras manifestações culturais surgidas a partir da década de 1960. No mundo todo o consumo de cannabis passou a ser um comportamento associado aos grupos tidos como “culturalmente alternativos”.

No Brasil a democracia sofria um duro golpe com a supressão dos direitos dos cidadãos e a implantação de uma ditadura sob comando dos militares. Em agosto de 1964, 4 meses após o Golpe, o então “presidente” Castello Branco publicou o Decreto-lei nº 54.216/64, incorporando ao ordenamento interno do país os acordos firmados na Convenção Única de 1961. Dessa forma a Convenção foi promulgada, concluindo o processo que inclui o Brasil até hoje entre os países signatários. Em 1976 entra em vigor a Lei 6368, que ficou conhecida como Lei de Tóxicos, que previa pena de prisão de 6 meses a 2 anos para usuários e de 3 a 15 anos para traficantes. Mais uma vez uma lei criada num período de ditadura. Além de manter a proibição do acesso a planta, dando força ao tráfico de drogas, a Lei manteve o absurdo crime de induzir ou instigar alguém a usar entorpecentes, que continuou tornando possível a condenação de qualquer um que falasse dos aspectos positivos de uma substância ou da sua legalização, mesmo que não estivesse a vendendo ou consumindo. Mais uma vez as leis de controle sobre hábitos culturais voltaram a ser utilizadas para controlar populações específicas, seus hábitos e concepções culturais, consideradas num determinado momento da história indesejadas pelos grupos que estavam no poder. Desde que foi criado, esse artigo tem sido usado diversas vezes para criminalizar movimentos sociais que lutam por mudanças nas leis sobre a maconha e outras drogas.

Como vimos, a Lei tem sido usada em diferentes períodos do séc. XX para manter sob constante vigilância grupos considerados como potencialmente ameaçadores as ordem social, cultural ou política. As leis sobre drogas têm servido como instrumento para diferentes governos ampliarem os mecanismo de controle sobre a sociedade brasileira e, com isso, os poderes do Estado sobre o povo. Em 1980, Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil) e Pepeu Gomes foram acusados de apologia por causa da música “O mal é o que sai da boca”, que foi proibida de ser tocada em todo país. A letra afirmava, entre outras coisas, “Você pode fumar baseado / baseado em que você pode fazer quase tudo / Contanto que você possua / mas não seja possuído”.

Em 1985 finalmente o Brasil comemora o fim da ditadura militar e a posse de José Sarney, eleito democraticamente com voto direto. Em 1986, ocorreu a primeira tentativa de passeata pela legalização da maconha, organizada por estudantes da USP e outras pessoas engajadas. No entanto, a polícia impediu a manifestação e levou todos para a delegacia, mais uma vez utilizando como argumento a acusação de apologia ao uso de drogas, baseando-se no instrumento ideológico contido na lei. Assim como ocorria com a lei anterior, durante a vigência da Lei 6368/76, qualquer um estava sujeito ao que ocorreu com o grupo musical Planet Hemp, que ficaram presos por 5 dias em 1997, por que suas músicas pediam a legalização da erva. Toda essa repressão explica porque os grupos organizados pela legalização da maconha só firmar a partir dos anos 2000, quando começaram a haver mudanças na aplicação da lei e indicativos seguros de que o Brasil adotaria uma outra postura sobre o tema, mas essa é uma história que contaremos no próximo capítulo desta série.

*Sergio Vidal é pesquisador, escritor, ativista, redutor de danos e pai dedicado de uma linda menina de 5 anos. Biografia completa no link: http://sergio-vidal.blogspot.com.br/p/sergio-vidal.html

* Picture by @420smokespots (Instagram)

gt-banner-quadrado-volta-ao-mundo.gif

destaques

nas redes sociais

  • Facebook Social Icon
  • Twitter Social Icon
  • YouTube Social  Icon
  • Instagram Social Icon
bottom of page