Como são feitos os remédios de cannabis? Parte I
Quando falamos em maconha medicinal estamos nos referindo as propriedades terapêutica de diferentes compostos produzidos exclusivamente por plantas da espécie cannabis, os chamados fitocannabinóides. Diferentes partes da planta podem ser utilizadas para produzir variados medicamentos, porém é nas flores fêmeas que há maior concentração da resina rica em fitocannabinóides. As diferentes partes da cannabis são, portanto, matéria-prima principal para inúmeros produtos com utilizaçtão no tratamento de variadas doenças e alívio de muitos sintomas. Cada um desses compostos tem uma ação específica no organismo humano e cada planta de cannabis possuí uma combinação única deles, variando em proporção um dos outros. Para a confecção de medicamentos, além de selecionar as variações naturais existentes em cada planta, os cientistas e profissionais dessa nova industria farmacêutica também têm combinado extratos de diferentes plantas para obter um equilíbrio singular entre os fitocannabinóides e, com isso, tratar doenças ou sintomas específicos. Nesta série de artigos discutiremos quais sãos os aspectos levados em consideração no processo produtivo dos remédios de maconha, desde o cultivo, às técnicas de extração do óleo medicinal até as formas de produção e administração dos medicamentos.
Cultivando maconha de qualidade farmacêutica
Também temos que ter em mente que quando nos referimos a maconha para uso medicinal são plantas da mesma espécie das que são utilizadas como droga recreativa, ou do mesmo tipo usado para extração de fibras ou combustível, mas todo tratamento é diferenciado, desde o planejamento e realização do cultivo até a colheita e beneficiamento. Em cultivos para fins medicinais todos os mínimos fatores são levados em consideração para maximizar o potencial da planta para produzir muita resina, rica em fitocannabinóides e terpenos. Temperatura, umidade relativa do ar, textura do solo, disponibilidade de dióxido de carbono para as folhas, disponibilidade de oxigênio e nutrientes específicos para cada fase de crescimento, são apenas alguns dos fatores que interferem na qualidade final. Deve haver um monitoramento rigoroso onde tudo deve ser controlado e mantido em padrões ideais constantemente para evitar pragas e contaminações. Os produtos utilizados para nutrir as plantas e controlar pragas também devem ser selecionados entre os melhores e usados com bastante cautela para não acumular substâncias que podem ser tóxicas à saúde dos pacientes. Por isso os investimentos em estufas climatizadas, projetadas para evitar a entrada de qualquer tipo de praga são as melhores soluções nesses casos, pois minimizam o uso de pesticidas ou defensivos, já que mantém as plantas em ambientes isolados, com controle rigoroso da qualidade do ar que entra na estufa para evitar contaminações.
Na Holanda, um dos primeiros países do mundo a legalizar o uso medicinal da cannabis, a Agência Nacional da Cannabis Medicinal faz testes frequentes em amostras aleatórias para verificar se não há contaminações por fungos, bactérias ou outros micro-organismos que possam prejudicar a saúde dos pacientes. Essa medida também é adotada no Canadá e nos estados dos EUA onde há regulamentação medicinal. Atualmente, em todos os lugares onde há regulamentação dos usos medicinais há também obrigatoriedade dos produtores em manter transparência de todo processo de cultivo, beneficiamento, extração e preparo do medicamento. É também frequente a testagem das flores e dos produtos finais para analisar se há contaminações ou não. Em Washington, onde há regulamentação dos usos recreativos também, recentemente 2 grandes produtores foram multados por terem utilizados pesticidas proibidos, o que demonstra que esse tipo de controle de qualidade já está chegando inclusive ao mercado para fins recreativos, em países onde ele é regulado.
Selecionando plantas medicinais
Uma vez tendo equacionado a questão do ambiente de cultivo especializado começa a etapa de seleção de quais espécimes serão utilizados. A cannabis é uma planta com uma variabilidade genética muito grande, especialmente com relação ao perfil bioquímico da sua resina no que diz respeito aos tipos e proporções de terpenos e fitocannabinóides. Também há uma variação muito grande com relação à produtividade de cada espécime, tanto no que diz respeito à característica de quantidade de flores por plantas, quanto na de resina por inflorescência. Cada espécime de cannabis produz um tipo de resina singular, tanto em termos de quantidade de um ou outro princípio ativo, quanto no perfil dos seus terpenos. Assim, se cultivamos 1000 sementes de uma mesma variedade de cannabis podemos esperar certamente que cada um dos espécimes nos apresentará um perfil bioquímico variado em sua resina. E, o mais importante de se destacar, uma quantidade muito pequena dessa amostra terá características ótimas para ser utilizada como planta produtora de fitocannabinóides. Por isso é tão importante a etapa de seleção dos espécimes a serem utilizados.
Os produtores então, antes de colocar as plantas para florir, retiram galhos com os quais fazem mudas, os chamados “clones”, que se tornam cópias idênticas às plantas originais, com as mesmas características em todos os aspectos, incluindo no perfil da resina. Após a floração das plantas originais eles podem então fazer testes e saber o perfil de terpenos e fitocannabinóides de cada uma das cópias que ele guardou, mesmo antes delas florirem. Dessa maneira, os cultivadores tornam os resultados das colheitas previsíveis, sempre reproduzindo apenas os resultados que desejam, eliminando do projeto as cópias com características que não servem ao propósito de uso medicinal. Essa técnica já era utilizada para diversos outros tipos de plantas e apenas foi adaptada às especificidades da cannabis. Assim os cultivadores podem ter controle sobre o perfil dos fitocannabinóides das muitas variedades que estão cultivando e facilitar o trabalho dos farmacêuticos e químicos na produção dos medicamentos.
Idealmente, em cultivos para fins medicinais somente as plantas fêmeas não-polinizadas são utilizadas pois são as que mais produzem resina. A resina produzida por fêmeas polinizadas ou machos também serve, mas são de qualidade inferior e em quantidade muito pequena. Então, logo que são identificadas, os espécimes machos são eliminados do cultivo pois se eles polinizam as fêmeas, diminuem a produtividade da colheita. Em cultivos para fins medicinais não se produz sementes, pois para produzi-las necessariamente temos que polinizar as fêmeas e, com isso, há uma diminuição na qualidade e quantidade da resina. Em cultivos para fins medicinais, sementes de uma ou mais linhagens específicas são compradas em grandes quantidades de algum criador reconhecido, parar se obter o máximo de variabilidade da mesma linhagem, retiram mudas de todas as plantas e selecionam as melhores espécimes fêmeas, aquelas com o perfil bioquímico ideal para a produção dos remédios.
Extraindo e Preparando a Medicina
A cannabis pode ser consumida de diferentes maneiras para fins medicinais. Em alguns países onde ela é legalizada e também em alguns estados dos EUA a planta é inclusive vendida como flor seca in natura, em frascos especiais, hermeticamente fechados e com tampas à prova de crianças. Muitos pacientes também consomem a resina in natura extraída da planta, apenas dissolvendo-a em água, chá, café ou outro alimento para facilitar a ingestão. A resina extraída também é utilizada na manufatura ou fabricação de diferentes tipos de medicamentos que podem ampliar muito seu potencial terapêutico. Hoje em dia já sabemos, por exemplo, que há variações na maneira como o organismo absorve os princípios ativos também de acordo com a via de administração. Para cada doença ou sintoma com para a qual a cannabis possa ser receitada como parte do tratamento existe uma maneira ideal de uso.
Existem diferentes técnicas para extração da resina da cannabis e elas podem ser classificadas de variadas maneiras. Alguns especialistas classificam entre extrações “químicas” ou “mecânicas”, outros utilizam as categorias “com solventes” e “sem solventes”. Mas, o fato é que a cada dia surge uma nova técnica ampliando a maneira de classificar essas tecnologias de extração. As chamadas “químicas” ou “com solventes”, são as técnicas que utilizam uma ou mais substâncias para extrair o óleo da planta. Os solventes químicos mais conhecidos utilizados para isso são o butano, álcool isopropílico, nafta, álcool etílico de cereais, benzina, dentre outros. Desses, o único que não deixa resíduo tóxico no óleo extraído é o álcool etílico produzido a partir de cereais, utilizado em receitas homeopáticas e outras. Todos os outros solventes químicos exigem procedimentos especiais de purificação do óleo extraído antes que ele seja utilizado, sob riscos de danos à saúde. È importante destacar algo a respeito dos métodos “com solventes”: Apenas laboratórios farmacêuticos têm capacidade para extrair os princípios ativos de maneira realmente segura e realizar a purificação desses extratos tornado-os 100% livres de resíduos tóxicos dos solventes.
Dentre os solventes “químicos” existe a classe dos alimentícios ou comestíveis, que são outros óleos e gorduras utilizadas na extração da resina da cannabis. A resina pegajosa da cannabis é lipossolúvel, ou seja, é uma gordura especial que na natureza não se dissolve em água apenas em outras gorduras especiais, como leite, óleo de oliva, de soja, de linhaça, girassol, manteiga, dentre outras. Essas extrações com gorduras comestíveis podem ser consumidas diretamente ou acrescidas em receitas culinárias para tornar a ingestão mais agradável. Em muitos estados dos EUA e países onde há regulamentação do uso medicinal um número muito grande de pacientes prefere se medicar consumindo um alimento preparado com cannabis e atualmente na industria especializada já há alimentos medicados com controle rigoroso das quantidades de THC, CBD dentre outros fitocannabinóides, que são considerados oficialmente medicamentos. Quando usado da maneira correta, os alimentos medicados são uma das maneiras mais eficientes de administrar fitocannabinóides nos pacientes pois deixam os princípios ativos atuando por mais tempo no organismo, aproveitando melhor as doses.
Além das extrações com “solventes químicos” e com “gorduras comestíveis”, é possível também extrair utilizando técnicas chamadas de “mecânicas”, porque envolvem apenas força, atrito, temperatura, sem utilizar produtos solventes de nenhum tipo, seja, químicos ou comestíveis. A técnica mais antiga desse tipo é considerada a de fricção manual, utilizada na Índia há milhares de anos para produzir Charas, a resina sagrada do hinduísmo tradicional. As mãos tocam gentilmente plantas fêmeas e são mantidas em contato com muitas flores durante algum tempo, até que a resina vai aderindo à pele, se acumulando em camadas até que chegue numa quantidade considerada razoável. Então, com ajuda de uma faca ou outros instrumento, a resina é retirada e acumulada em algum recipiente. Algumas tradições utilizam o suor para extrair a resina das mãos. Também bastante antiga, outra técnica utilizada tradicionalmente no Marrocos utiliza um tecido de seda, ou de nylon, para filtrar a matéria vegetal, separando as resinas. Essa técnica tem sido aperfeiçoada por produtores modernos e atualmente existem maneiras de fazer utilizando gelo seco (gás carbônico congelado) e um filtro de nylon ou seda, ou usando água e gelo, com bolsas de nylon com filtros de diferentes diâmetros, extraindo glândula de resina com variados tamanhos, com quase nenhum resíduo de matéria vegetal. As vantagens das técnicas de extração mecânica, além da garantia de que são 100% livres de resíduos químicos tóxicos devido às próprias técnicas que não utilizam produtos químicos, é que elas tem um custo muito mais baixo dos que as outras, exigindo apenas conhecimento, equipamentos e materiais muito baratos.
*Sergio Vidal é pesquisador, escritor, ativista, redutor de danos e pai dedicado de uma linda menina de 5 anos. Biografia completa no link: http://sergio-vidal.blogspot.com.br/p/sergio-vidal.html